Documentário escancara a fragilidade da apuração jornalística

Na imagem vê-se um homem de terno, personagem do documentário O Abraço Corporativo, segurando uma placa onde se lê a frase "Dá um abraço?"."
Foto:  Eduardo Barillari/Divulgação

“O Abraço Corporativo”, documentário satírico dirigido e idealizado por Ricardo Kauffman, critica e escancara as fragilidades das práticas jornalísticas no contexto de emergência do jornalismo digital e enxugamento das redações, vivido no início dos anos 2000. O jornalista e diretor cria um personagem fictício, Ary Itnem, um suposto psicólogo, membro de uma Confraria Britânica do Abraço Corporativo, que é interpretado por um ator e conquista espaço midiático com suas “inverdades”.

Suspeito que Kauffman, ao iniciar seu experimento, torcia para estar errado. Propositalmente ele deixa pistas e vácuos para gerar desconfiança dos jornalistas, a começar pelo nome do personagem – “mentyira” ao contrário. No entanto, sua desconfiança acerca da apuração dos fatos é comprovada à medida que vários jornais publicam entrevistas com o “psicólogo” e tratam o Abraço Corporativo como uma teoria fundamentada. Apesar de alguns jornalistas terem desistido de publicar reportagens por acharem inconsistências na narrativa, nenhum descobriu a farsa por completo. 

Neste sentido, concordo com o que Contardo Calligaris, psicanalista e colunista da Folha de S. Paulo,  aponta no documentário. Trata-se de um “boato sofisticado” e há “certa qualidade no que está sendo dito”. Kauffman conhecia a rotina da redação e dedicou-se a assessorar Ary Itnem, conferindo uma credibilidade (falsa) ao ator. A narrativa da “inércia do afastamento”, uma doença da era digital para a qual o abraço seria o remédio, explorava diretamente as inseguranças das empresas e dos indivíduos na era digital e o anseio público por soluções prontas e milagrosas.

O professor e consultor Thomaz Wood Jr., entrevistado para o documentário, explica que a globalização na década de 80 aumentou a competitividade empresarial e trouxe inseguranças, sobre as quais se criaram serviços de consultorias, escolas de negócios, a mídia de negócios e  os gurus. O espaço midiático dado às “supostas inovações” já existia antes do Abraço Corporativo, de forma que a teoria de Ary Itnem talvez não soasse absurda aos jornalistas.

Na perspectiva da psicanálise, Calligaris discute que histórias mirabolantes, quando atreladas à religião, são validadas e tidas como verdadeiras por se tratarem de crenças coletivas. Ele diferencia estas de crenças individuais, que, nas palavras dele, podem levar alguém ao hospital psiquiátrico, e de crenças de grupos – que acreditam na existência do Pé Grande, por exemplo. A publicação e repetição do Abraço Corporativo em diversos meios conferiu a ele essa credibilidade de crença coletiva. E o movimento que se desdobrou desse experimento, o “Tudo Não É Verdade”, evidencia a falta de vontade da mídia e do público em duvidar.

Como vários entrevistados apontaram, os jornais publicaram sem ter grandes informações porque o público estava gostando, porque precisavam de pautas de Recursos Humanos, porque tinham lacunas de programação para preencher e, em geral, porque não se importavam com a veracidade da informação ou com as intenções por trás dela, infelizmente. Trataram a saúde mental como um assunto inofensivo, que não traria grandes malefícios se fosse falso. 

Assim como Kauffman, me decepcionei com os jornalistas por não desvendarem a charada. O que poderia ser uma caça ao tesouro, tornou-se uma venda barata. Com o público, fui mais empática. Afinal, todos queríamos acreditar que os problemas interpessoais, os desentendimentos com familiares e a distância afetiva podiam ser resolvidos com um simples abraço. E quem disse que não podem?

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