As paredes falam: a reinvenção dos espaços de debate na pandemia

As paredes falam: a reinvenção dos espaços de debate na pandemia

A incorporação da estética do protesto pelo Grafite Digital no espaço urbano

Por Gabriel Tassi e Kássia Calonassi

Galeria virtual de Gabriel Tassi

Na Grécia Antiga, o debate público se construía nas ágoras; nos Estados Unidos da década de 50, nos bares e cafés; em Curitiba, na Boca Maldita; no século XXI, migrou para as redes sociais; e na pandemia, ganhou voz nas mais variadas formas, inclusive nas paredes de prédios.

No debate, cada emissor tem por objetivo transmitir seus ideais, e os espaços públicos – a rua, os monumentos, os prédios – são públicos, e falam para as multidões. Portanto, incorporá-los no debate é uma estratégia que começa na Grécia Antiga e evolui junto dos meios de comunicação. 

Desde os anos 70, o Grafite já se popularizou no espaço público, enquanto arte de protesto, uma intervenção silenciosa que grita aos ouvidos da cidade e obriga a população a consumi-la. É uma arte ativa, um movimento organizado que vai até as pessoas e não se limita às galerias – embora também possa ocupá-las. E também é silenciosa, criada no anonimato, e utiliza pseudônimos para fundar uma nova identidade ao artista, parte da estética do protesto.

Banksy, o grafiteiro mais famoso do mundo,  escondeu a própria identidade por anos, ainda que nos holofotes da mídia mundial. Sua obra é pura crítica social anti-guerra e funciona em conjunto com o urbanismo: é a arte certa no local certo. O Grafite de Banksy invadiu museus, um parque da Disney e muros da Faixa de Gaza. O documentário dirigido por ele, “Saída pela loja de presentes”, exibe a realidade do grafite como um estilo de vida, e dos grafiteiros como um coletivo. 

O fundador da empresa Yo Street, e maior pesquisador da estética do grafite no Brasil, Otávio Fabro Boemer, defende a lógica do grafiteiro enquanto um flâneur, um observador urbano que se perde para se encontrar, mas não se limita a isso: vivencia a cidade e a modifica, característica última que não é própria do flâneur, mas que pode ser incorporada.

O Grafite Digital surge da significação de projeções artísticas: o Cristo Redentor com as cores da bandeira do Brasil se tornou o Cristo Redentor com as cores do combate ao racismo, e as projeções dotaram-se do debate num processo natural, foram incorporadas pela estética do protesto como qualquer outra forma de expressão. Mas no começo, as projeções eram meras projeções, e se tornam grafite digital quando se tornam intervenções urbanas, deixam os espaços glamourizados –  as praças e os monumentos – e ocupam o lugar comum – a parede de um prédio abandonado, um lugar em qualquer lugar.

É na pandemia que o grafite digital mergulha na estética do protesto, tal qual a estética de Picasso com Guernica. Pessoas anônimas projetaram mensagens contra o governo Bolsonaro durante os pronunciamentos oficiais na TV e encontraram nas paredes uma galeria urbana moldável.

Estética do Grafite Digital

O Graffiti nascido em Nova Iorque como parte do movimento do Hip Hop sempre teve um caráter sócio-político e dava voz às indagações da periferia. Vista como uma arte dos “marginais”, era uma forma de ocuparem o espaço dos grandes centros urbanos. Não é uma surpresa, então, que o Grafite Digital tenha surgido com propósito semelhante – existe para criticar e existe porque há algo a ser criticado.

E o negacionismo científico no Brasil, motivado por autoridades políticas durante a crise sanitária de covid-19, era algo a ser criticado. Giselle Beiguelman, artista e professora da Faculdade de Urbanismo da USP, disse ao Jornal da USP, que as projeções "deixam claro que nossas insatisfações estão literalmente subindo pelas paredes". A revolta assumiu forma de hashtags, postagens e manifestações de rua, a última controversa devido à pandemia.

Ficar em casa tornou-se um ato político, artistas perderam seus palcos e buscaram formas alternativas de manifestação. As redes sociais foram uma escolha simplista, e não produziram o efeito esperado: eram ouvidos, mas não geravam reação. “O cidadão interessado e informado pode deleitar-se com tudo aquilo que sabe, não percebendo que se abstém de decidir e de agir”, explicam os sociólogos Merton e Lazarsfeld sobre o que chamaram de efeito de disfunção narcotizante: a inércia causada pelo excesso de informação, efeito que foi acentuado com a infodemia durante a covid-19.

Nesse contexto, as projeções assumiram o melhor do mundo digital e das manifestações de rua: a facilidade de criar conteúdo online, e a utilização do espaço público para debate. Era um protesto cru, um protesto irado, que não se preocupou com a composição estética, e sim com o efeito provocado nos receptores. Apropriou-se da caosmose e do paradigma estético de Guattari, que já entendia a arte como edificadora do debate público: “No lugar de querer fazer reduções da arte através de esquemas políticos, eu preferiria  que  fizéssemos  recomposições  políticas  através  das  riquezas  da arte”.

Incorporou-se muito das redes sociais: textos influenciados pela memética, associados a imagens, charges e críticas políticas. É uma arte que não se apega aos detalhes, a fonte textual escolhida não importa, assim como as cores, a disposição gráfica dos elementos e a originalidade das formas. Importa o contexto, a mensagem em si e a criatividade.



A imagem acima foi projetada em 19 de março de 2020, no momento de panelaços contrários ao presidente Jair Bolsonaro. Observa-se a estética de protesto, que se concentra na mensagem e não em uma disposição harmônica e bela. A projeção sobrepõe imagem com texto – a célebre frase do presidente, “é só uma gripezinha” – com pouca edição e pouco recurso gráfico. Foi estampada em um prédio qualquer, e esta é outra marca do Grafite Digital: não há a procura de um espaço específico, a parede ideal para aquela arte. O Grafite Digital é uma arte que se poderia montar em cinco minutos, com um celular, e ser projetada pela janela da casa de quem a criou. 

O Grafite Digital se diferencia da arte de rua justamente porque o artista está em casa. Enquanto o grafite ficou conhecido pela busca da parede correta e pela ilegalidade – os grafiteiros são perseguidos e muitas vezes presos –, isso não acontece com o digital, um fenômeno tão novo que ainda não há legislação federal a respeito. Em algumas cidades, como São Paulo, a atividade é proibida, mas isso tampouco assusta os participantes.

As projeções surgiram em um momento de isolamento social, todavia não estão mais isoladas. Os protestantes estão conectados e organizados, a exemplo do coletivo Projetemos, que organizou o primeiro "projetaço mundial", no dia 07 de abril de 2020, e engajou pessoas em outros países como Argentina, México, Chile, Estados Unidos e Inglaterra. A nova arte não é apenas uma substituta para os protestos de rua, está ganhando identidade própria e validou-se enquanto arte reivindicatória: "Mesmo quando essa pandemia passar, vamos continuar com as mensagens. Sempre há o que reivindicar", diz VJ Spencer, um dos criadores do coletivo.

Referências

BOEMER, Otávio Fabro. GRAFFITI: Ética, estética e poética. O eu grafiteiro/artista/pesquisador ser culto híbrido contemporâneo. 2018. 473 f. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Instituto de Artes, 2018. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/181730. Acesso em: 07/08/2021.  

DIEB, Daniel. Como fazer projeções nas fachadas de prédios. Tilt UOL, São Paulo, 17 de abril de 2020. Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/04/17/como-fazer-um-projetor-caseiro-para-usar-em-seus-protestos-politicos.htm. Acesso em: 20/06/2021. 

FERRAZ, Adriana. Projeções em prédios viram nova forma de se manifestar durante os panelaços. UOL Cotidiano, São Paulo, 29 de março de 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/03/29/projecoes-viram-nova-forma-de-se-manifestar.htm. Acesso em: 20/06/2021. 

GUATTARI,  Félix. Caosmose:  um  novo  paradigma  estético.  São  Paulo:  Editora  34, 1992.

MERTON, Robert; LAZARSFELD, Paul. Comunicação de massa, gosto popular e a organização da ação social. In: LIMA, Luiz Costa (org.). Teoria da cultura de massa. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 109-131. 

PICASSO, Pablo. Guernica. 1937. Pintura. Disponível em: https://www.museoreinasofia.es/en/collection/room/room-205. Acesso em: 20/06/2021.

SAÍDA pela loja de presentes. Direção de Banksy. Reino Unido: Jaimie D'Cruz, 2010. (87 min.).

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