O que o livro “Ela Disse” revela sobre o movimento “Me Too”, em Hollywood


O livro “Ela Disse: os bastidores da reportagem que impulsionou o #MeToo” é centrado na apuração da reportagem “Harvey Weinstein suborbou acusadoras de assédio sexual por décadas” (tradução própria), publicada no dia 05 de outubro de 2017, no The New York Times. 

A reportagem escrita por Jodi Kanton e Megan Twohey, que também são as autoras do livro, denunciava o comportamento predatório de Harvey Weinstein, que assediou mulheres ao longo de três décadas, e, até a publicação da reportagem, seguia impune.

“Ela Disse” também contempla as denúncias de agressão sexual ao presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anteriores à reportagem, e a denúncia de Christine Blasey Ford ao Juiz da Suprema Corte americana, Brett Kavanaugh, no pós-Weinstein. 

O ponto de partida do livro é um tweet da atriz Rose McGowan insinuando que fora estuprada por um grande produtor de Hollywood. Kanton, que já ouvira boatos do comportamento de Weinstein, prontificou-se para descobrir se o tweet se tratava do dono da The Weinstein Company (TWC), e se haviam mais mulheres com histórias parecidas.

Enquanto isso, Twohey, que estava grávida, recuperava-se de uma reportagem que escreveu em parceria com um colega, denunciando a forma como o então candidato à presidência, Donald Trump, tratava as mulheres. Megan convenceu as mulheres a irem a público, porém, a história foi desacreditada e as vítimas ficaram expostas.

Antes da reportagem sobre Harvey Weinstein, o NYT já possuía uma equipe voltada a investigar o assédio sexual em empresas. O escopo ia de Hollywood, a grandes corporações, ao universo acadêmico, ao Vale do Silício e até às minas de mineração.

No entanto, era mais fácil para mulheres “comuns” contarem suas histórias. Mesmo que fossem demitidas, facilmente conseguiriam outro emprego. Supunha-se também que mulheres famosas geram menos empatia — reportagens envolvendo famosas facilmente se tornavam em um escândalo atribuído a elas, e não ao agressor.  

“Por que era responsabilidade delas vir a público para revelar essas histórias constrangedoras se nunca tinham feito nada de errado?”, dizem as autoras. Como o furo sobre as acusações de Trump mostrou, as mulheres tinham muito a perder. As atrizes seriam atacadas pela mídia e suas carreiras seriam dificultadas, as produtoras e funcionárias da Weinstein Company perderiam os empregos, e possivelmente não conseguiriam mais trabalho em Hollywood. 

O dilema de “ela disse” é que assédio sexual é algo muito difícil de se comprovar, e, mesmo quando se comprova, os homens costumam ser mais acreditados. Quando o assédio é praticado por um homem poderoso, a situação piora. “Claro que foi consensual. Que aspirante a atriz não quer transar com um produtor famoso para alavancar a carreira?”. O estigma que mulheres hollywoodianas são “aproveitadoras e promíscuas" tampouco ajuda. 

O assediador

Harvey Weinstein era visto pelas pessoas como um “mulherengo”, ou ainda como um “viciado em sexo”. Mas Weinstein era um predador. Havia conquistado uma posição de fama e poder na vida, e adorava isso. Conceder desejos e trocar favores era o seu hobby. Gostava que as pessoas precisassem dele. Queria ser bajulado. 

Não à toa, seu legado como produtor era lançar artistas, principalmente atrizes. Via em cada mulher jovem com um sonho de trabalhar com cinema uma chance de oferecer os seus favores, quase como um agente. O preço? Massagens, nudez, punhetas, sexo oral, penetração, submissão. 

Por uma visão de fora, parece humilhante que Weinstein precisasse oferecer trabalhos e dinheiro para conseguir levar alguém para cama. Mas ele não achava humilhante. Achava divertido. Era um abusador, sem arrependimentos e sem vontade de mudar. Como as repórteres descobriram, o produtor criou um sistema legal e burocrático para esconder as ações e não ser obrigado a ‘melhorar’.

E o ego de Harvey Weinstein ia para além daquelas mulheres que queriam seu apoio profissional para a carreira. Atormentava mulheres que nunca lhe pediram nada. As perseguia. Intimidava e maltratava funcionários. Maltratou o próprio irmão e sócio, Bob Weinstein. E, de forma ainda mais petulante, conseguia se mostrar como um homem carismático e benevolente para a mídia e para Hollywood. 

Weinstein era, como dito pelo próprio irmão, “alguém que tinha se perdido completamente e que não valorizava as pessoas enquanto seres humanos e indivíduos (...), era um valentão que desconta suas próprias inseguranças nas pessoas mais fracas”.

As vítimas

Madden era jovem, tinha 21 anos quando conheceu Weinstein. Vivia com a família na Irlanda e sonhava em sair de casa e conhecer o mundo. Conseguiu um trabalho em um filme que estava sendo gravado na região como organizadora de figurantes e logo se apaixonou por cinema. O próximo passo era tentar uma vaga no longa “No limite da inocência”, e ela conseguiu.

Recém-contratada, foi convidada ao quarto de hotel de Weinstein em Dublin, onde champanhe, sanduíches e um produtor de roupão esperavam por ela. Harvey garantiu a ela um trabalho na sede da Miramax em Londres, e disse que todos haviam notado o bom trabalho desempenhado pela moça. Madden, que sonhara com isso a vida toda, ficou em êxtase.

Mas o sonho virou pesadelo quando o produtor começou os seus pedidos. Pediu uma massagem, a qual ela aceitou fazer após muita insistência. Depois, ele sugeriu massageá-la e pediu para que tirasse a blusa, o sutiã, e depois tirou a calça dela também. O homem masturbou-se à frente da moça. Sugeriu coisas sexuais, a qual Madden negava, e então sugeriu “só uma ducha‘. Laura cedeu.

Ela chorava, e o produtor acabou se afastando. Madden trancou-se no banheiro, apavorada, e ouvia ainda o produtor se masturbando. A pior parte do abuso sofrido, segundo ela, foi o desaparecimento de qualquer crença que fora promovida por seu bom trabalho. A redução de um sonho a um assédio.

Por fim, aceitou o emprego de qualquer forma, era a chance que tinha. Mas nunca foi feliz na Miramax devido ao sofrimento daquele dia. Quando foi abordada por Jodi, Madden estava no pior momento de sua vida. Recém-separada do marido, era mãe solteira de quatro filhos, e lidava com um câncer de mama — havia retirado uma das mamas, e em breve teria que fazer mais uma mastectomia. 

No entanto, parte do que motivou a irlandesa a aceitar o convite de falar com as jornalistas foi uma estratégia falha da equipe do produtor de Weinstein de calá-la: uma ex-colega ligou perguntando se ela havia conversado com o NYT. Aquilo foi um ultraje para Madden. Por fim, considerou ir à público: “Tudo parecia estar implodindo, um pouco mais de implosão não parecia tão ruim”.

Quando a reportagem avançou, foi a primeira a concordar a falar on the record, queria fazer algo pelo futuro de suas duas filhas. Vale lembrar que Jodi também é mãe de duas meninas, e Megan tinha acabado de dar à luz a uma menina — as três estão na dedicatória do livro. Todas queriam um mundo mais gentil com as mulheres. Madden sempre se sentiu culpada por ter cedido aos pedidos de Weinstein e por aceitar o emprego, como se estivesse concordando com o assédio. A reportagem foi uma forma de fazer as pazes com si própria e ajudar outras mulheres.

Ao contrário de Laura Madden, e de outras atrizes como Gwyneth Paltrow, Ashley Judd já era uma estrela quando conheceu o produtor. Mesmo assim, Weinstein insistiu que marcassem uma reunião após se encontrarem em um evento em Los Angeles. O encontro foi no Hotel Beverly Hills — cenário típico de Weinstein — e Judd foi mandada à suíte. Naquele momento, nada ocorreu, mas poucos dias depois, no mesmo hotel, Judd viu o produtor trajado de roupão no que deveria ser uma reunião de trabalho.

O produtor pediu que ela o ajudasse a escolher a roupa que usaria e a levou ao banheiro. A partir daí, pedidos que pareciam ordens abertamente sexuais tomaram conta da discussão. Judd “disse não de muitas maneiras, muitas vezes”. Por fim, o produtor pediu que ela o assistisse tomar um banho, e ela recusou novamente. Saiu “brincando” que quando ganhasse um Oscar pela Miramax o “pagaria um boquete”, insinuando que ele não havia feito nada de errado para não prejudicar sua carreira. 

Judd contou a história abertamente às jornalistas no primeiro contato. Weinstein não foi o único que assediou a atriz, que teve uma infância e juventude solitária na qual sofreu diversos abusos. Mas estava pronta para contar sua história, havia escrito um livro de memórias “All That Bitter and Sweet” e encontrara o seu lugar: a universidade Harvard Kennedy School. A atriz era uma estudiosa de gênero e ativista. 

O movimento

 Megan e Jodi já tinham ouvido que Harvey “nem era tão famoso assim”, e temiam que a reportagem não impactasse as pessoas…

A hashtag #MeToo foi criada por Tarana Burke, em 2006, como uma forma de escancarar o assédio sexual sofrido em ambientes de trabalho. Dez dias após a publicação da reportagem de Jodi e Megan, 15 de outubro de 2017, a atriz estadunidense Alyssa Milano publicou no Twitter um incentivo às mulheres se pronunciarem dizendo “Me Too”. A partir disso, o Me Too deixou de ser uma hashtag e passou a ser um movimento no qual mulheres do mundo todo decidiram que era a hora de denunciar os seus abusadores.

Milhares de mulheres tinham histórias, e todas queriam ser ouvidas. No começo, o movimento foi positivo e incentivou mulheres que sofreram abusos a se pronunciarem. Elas não estavam mais sozinhas, e não tinham medo. Claro que não demorou para que a situação saísse do controle. No livro, as jornalistas falam que não havia consenso sobre o que era assédio sexual. Qual era a valia de discutir algo que aconteceu a cinquenta anos atrás e não havia menor chance de ser comprovada judicialmente? Algo desagradável dito por um homem é assédio por si só?

Logo surgiram histórias mentirosas de assédio visando o interesse próprio, o que descredibilizou todo o movimento. Virou uma briga de elas contra eles, e não tardou para que os homens se colocassem como vítimas da situação. Um dos advogados de Weinstein comparou o movimento à caça às bruxas, uma perseguição governamental aos contrários, justificada como uma ação anti-comunismo nos anos 50.  

O Presidente Trump também desmereceu a ação, em defesa de Kavanaugh, em uma conferência nos Estados Unidos, em 27 de outubro de 2018, e aproveitou para reforçar que suas acusadoras têm segundas intenções. No caso de Christie Ford, quando as pessoas começaram a duvidar de sua narrativa, a advogada falou: “ela poderia mostrar um vídeo de um ataque, e críticos ainda assim iam desmerecê-la”. Ironicamente, em outubro de 2021, cinco anos após a publicação da reportagem sobre Weinstein, a justiça brasileira absolveu novamente um homem acusado de estupro. A vítima, Mari Ferrer, possui um vídeo do estupro. 

A polaridade da política americana também foi um problema para o #MeToo, que conseguiu se manter neutro por um curto período antes de se tornar “democratas versus republicanos”. 

O Me Too era sobre denunciar os agressores e apoiar as vítimas, e atingia mulheres de diferentes países e classes. Dele, derivou outro movimento “Time’s Up” voltado ao assédio sexual em Hollywood, que promovia novas diretrizes de conduta aos estúdios. Como as autoras contam no epílogo, a própria Ashley Judd tornou-se membro.

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